Isso de viver, fica escondido em instantes.
Por exemplo, nos minutos entre o café ser pedido e o momento em que ele chega na mesa. Podem ser minutos de pressa (daí não se espera na mesa), minutos de pausa ou os minutos esperando quem chegará para ocupar a cadeira da frente. Melhores são os momentos em que chegam os dois ao mesmo tempo.
Também fica escondida na sensação de sentar no sofá de casa depois de um longo tempo fora.
Na chuva escorrendo na janela do carro, enquanto a mente viaja junto do asfalto e suas marcas.
Na sensação de escrever num caderno novo.
No olhar no espelho, pós novo corte de cabelo.
No sorriso do outro lado da porta se abrindo.
A coisa toda, é que a vida fica quietinha. Não faz alarde para parecer um festival, uma inauguração ou algo importante. Ela observa da coxia.
Se olhar direitinho ela tá ali, bem embaixo da luz forte. Observando na platéia vazia.
Ela observou, aqueles três passos descalços em casa, acompanhando sapatos que voaram corredor adentro.
Viu também a pausa – maior do que deveria – olhando as fotos de viagem no celular.
Viu que você organizou a mesa e os tons combinaram.
O vinho aberto na geladeira que você guardou pra de noite.
Viu o olhar sorridente, olhando a mensagem inesperada que chegou e que aqueceu todo o dia, como se o coração vestisse um suéter ridículo.
A mensagem que te deixou sem saber o que pensar… ela também viu.
Viu também quando te contaram aquela notícia boa, que no fundo você não esperava e quando te contaram aquela notícia ruim, igualmente inesperada.
Mesmo escondida, pode ser que o instante em que a vida resolve aparecer não seja dos mais agradáveis. E isso não é de todo ruim, nos lembra das fragilidades, da nossa humanidade e da alma que sente (e sente bem) os baques que balançam o corpo e a cuca.
A vida também se esconde (um pouco evidente) na única parede colorida da casa.
Na calçada da praça General Glicério. Na esquina da Rua Toledo com a Madrid. Na calçada da Fernandes Tourinho, da Turfa, da Doutor Neves da Rocha, da Buarque, da Leite Leal, da Antônio Basílio…
Nos olhinhos se abrindo do outro lado da cama e na boca que diz bom dia, mas queria mesmo dizer boa noite. A vida viu, quando você também não quis levantar.
Viu a ligação de bem longe e o “saudades de você”, que seguiu um choro que você pensou que só você tinha visto.
Reparou na mancha de tinta de tanto escrever, no lado direito da mão direita.
Ela vê o descobrir de uma música que mexe com as proporções do rosto e arrasta pra ele qualquer expressão meio torta, torta do bem que faz esse mexer demais.
E vê também o que a gente escreve e guarda pra depois. Mesmo o depois que nunca vai chegar.
E quando é assim, ela fica observando de tão perto que dá um peso. Um aperto. Um suspiro. Esse instante pode parecer um tempão.
Ela se esconde nas páginas de um livro novo. Nas de jornal e de revista. Nos papéis anotados por aí.
No cheiro de tabuleiro saindo.
No cheiro de alecrim, de orégano, tomilho, coentro e capim limão.
No cheiro de pacote de biscoito.
No de gasolina, no de fósforo apagando, no de mato, no de terra, no de açaí (que é quase o de terra), no de chuva, no de pizza, no de chá. No de chocolate.
Nisso de ficar vendo os minutos que não vemos, muitos instantes ficam guardados num fundinho da gente. Um bolso bom e bagunçado que é gostoso meter a mão e tirar de lá qualquer instante. Isso de viver é coisa de muitos momentinhos juntos.
É bom juntar um, mais um, mais um… e deixar secar num varal daqui do peito. É bonito ver, ventar um vento de lembrança.